domingo, 17 de novembro de 2024

Do exercício mental à harmonia social


Isto é apenas um vídeo com piada, genuíno ou representado, pouco interessa, mas que, no fim, se revela a fonte de um riquíssimo exercício de análise sociológica...

Ler os comentários é entrar no mundo real, nas profundezas dos problemas de falta de sentido crítico, de raciocínio e contra-raciocínio, de reflexão sob ponto de vista contrário, de análise da perspetiva original, todas elas capacidades que, exercitadas juntas ou à vez, servem de lastro à garantia de uma sanidade mental e cultural coletiva que se quer cada vez mais aprimorada.

A maioria das pessoas que vemos em exercício apressado de comentário deste vídeo, em ânsias de notoriedade perante a previsibilidade do sucesso, são as mesmas que instalam a app royal match porque, orgulhosas e ansiosas, têm a certeza de fazer muito melhor resultado que o exemplo apresentado. Sabemos que são técnicas comerciais de venda que se apoiam na potencialização da valorização própria pessoal, provocando segregação química no corpo do ser humano alvo, que o fazem sentir feliz e realizado. O que também sabemos é que uma sociedade saudável desenvolve capacidade de entendimento destas patranhas e se adapta à convivência com elas sem se prejudicar, rindo-se delas, aniquilando o seu efeito social, porém, quando a sociedade nao está saudável, a coisa nao se desenvolve por aí...


Estudado o conceito e o contexto, fácil é percebermos que esta causa/efeito ou, se quiserem, esta ação/reação, quando transposta para outros patamares da vida, quer pessoal quer coletiva, tem implicações muito mais graves. Começando logo pelo ambiente laboral, no trabalho, com o acréscimo acentuado de sucesso, na ascenção hierárquica, de pessoas que padecem desta falta de conteúdo pessoal, moral e social, normalizando assim a reação acéfala como natural, o que não desminto que seja, mas cujo caminho que definimos há séculos, como humanidade, definia inquestionavelmente o seu abandono.

Mas podemos transferir, obviamente, o problema para as implicações sociais, com prejuízo coletivo, quando observamos a sua ação direta sobre escolhas eleitorais. Ao longo das últimas décadas, com a proliferação do impacto das redes sociais virtuais, mais fácil ficou de assumir este problema como arma eleitoral, usando, quer a desinformação, quer a reação imediata, ainda que genuína, como método aceitável de comportamento social, em detrimento da reflexão, da discussão sustentada, e da ponderação.

Este é o panorama que leva as pessoas a entender como viável, já que menos trabalhosa, a escolha eleitoral de propostas que lhes retirem a necessidade de se envolver.

Pode-se achar rebuscado, mas é um raciocínio que tem corrida de pensamento sem interrupções de lógica, obedecendo à concretização prática da cantiga das cerejas, premissa sempre tão validadora.

É por isso que, nos dias que agora vivemos e tentamos analisar, vivendo as pessoas, em maioria, muitas vezes de forma consciente, manietadas pelo canal único e unidirecional de informação, seja de olhos afunilados a uma tela de projeção de apenas 6 polegadas, seja por retângulo maior, da comunicação social, mas que se limita a debitar a retórica que defende os interesses dos seus donos (a media ter dono 😒), seja pelas diversas redes sociais virtuais que, iludindo com a ideia de que somos nós quem controla a busca de informação, nos debita invariavelmente o mesmo sentido, ainda que com cores e palavras diferentes, sempre em função da aplicação do algoritmo pré definido, na direção constante e ininterrupta dos interesses da minoria que domina, a que detém o dinheiro.

Recentrando o raciocínio, é este o cenário que leva a maioria das pessoas às escolhas eleitorais das propostas justiceiras, que lhes apresentam soluções que sempre andaram, sem que necessitem de mexer um dedo, senão o que segura a esferográfica do voto.

Ora, sabemos todos que, em épocas medievais, estas foram táticas de sucesso que sempre resultaram, apenas, na ainda maior concentração de poder e riqueza.

Sabemos todos que a ausência de escrutínio contínuo não pode ser virtude de sistema nenhum, e resulta sempre no prejuízo da maioria em função do sucesso, apenas, dos agentes políticos que propõem a tal solução fácil e descansada.

É, por isso, importante que, ainda que poucos, nos mantenhamos firmes na necessidade de manter a proposta de fomento do espírito crítico, de discussão coletiva, de apreciação do lado contrário ou, muitas das vezes, do ponto de vista paralelo, a fim de percebermos que os objetivos são, na verdade, comuns e válidos.

É necessário fazer passar a verdade de que a sociedade só se movimenta em bloco, no sentido certo, se todos, ou pelo menos a maioria, nos entregarmos à proposta eleitoral que não nos apresenta qualquer fórmula mágica, mas apenas a garantia de que o trabalho de todos, o raciocínio de todos, a ponderação do ponto de vista de todos, e a ação geral, são fundamentais para a movimentação positiva que, sem heróis nem egrégios, não deixará ninguém para trás...

domingo, 16 de julho de 2023

Onde o povo está

A história ensina-nos que as primeiras cidades, e todas as que se seguiram ao longo dos séculos, apareceram pela necessidade de concentração do povo, para que a vida em comunidade se pudesse desenrolar no seu conceito básico. A proximidade abriu espaço para uma maior e melhor troca de bens, produtos e serviços e, mais tarde, com a inclusão dos serviços públicos essenciais, dentro da lógica de proximidade e consequente otimização da ação e abrangência desse serviço.

Em Lisboa, por exemplo, Alfama resultou da concentração de trabalhadores do porto, estivadores, varinas, conserveiras e operários da tabaqueira.

Em boa verdade, o surgimento das cidades resultou de uma sempre grande necessidade dos pobres em viver em aglomerado, otimizando recursos, minimizando os efeitos da escassez, sobretudo económica.

Esse conceito tem sido descaracterizado pelo fenómeno da gentrificação, que é o afluxo das classes mais abastadas aos centros das cidades, obrigando os mais pobres a fugir para periferia.

Muitos dirão que se trata de uma inevitabilidade. Na verdade, o fenómeno é até já bem visível nos resultados eleitorais das freguesias que compõem as maiores cidades em Portugal, tendo passado todas de uma realidade de maioria de preferência política de esquerda, para o entendimento diametralmente oposto.

Para que nos entendamos, a lógica de mercado é um fenómeno perfeitamente normal, entendível, e aceitável, desde que submetido aos setores da sociedade, e economia, que não podem em causa o equilíbrio social.

Infelizmente, a ganância e a sede de lucro, a todo o custo, do monstro capitalista, abraçam já o entendimento de que mesmo as bases do equilíbrio social são vendáveis e delas pode ser retirado lucro.

A especulação imobiliária pode e deve ser travada, regulamentando ou legislando, conforme o ponto de vista ou a soberania de ação, de modo a que o equilíbrio social se mantenha e as cidades continuem, como sempre, a ser a casa dos operários, serventes, comerciantes, etc... Com todos os serviços públicos que lhes são garantidos pela Constituição da República.

De outra forma, os centros das cidades passarão a ser território franco, sem direitos nem obrigações das autarquias e dos governos, e devemos começar a debater se não deverão os serviços públicos, pela lógica que os refunda, ser desviados e reimplementados na periferia, em detrimento do centro urbano, indo servir, efetivamente, os utentes, ou seja, o povo!



domingo, 9 de julho de 2023

o ódio de classe, à sua própria classe

São 11 da manhã de um domingo de calor numa pastelaria dos subúrbios de uma das "grandes" cidades portuguesas.


Quatro homens, reformados, ex emigrantes em França, discutem os tumultos de Paris e outras cidades Francesas e chegam rapidamente a uma conclusão unânime.

Do alto da sua parolíssima assunção de privilégio, declaram sem vergonha nenhuma que a solução era pegar neles todos, meter num avião, e mandar para África. Assim, sem mais!

Ignoram o papel que os imigrantes Portugueses tiveram, em França, na marcação de passo do avanço nos direitos dos Trabalhadores Franceses, furando greves, aceitando pagamentos por baixo da mesa, contribuindo para a fuga aos impostos que patrões, muitas vezes também Portugueses, lhes propunham, o que resultou, na maioria dos casos, num valor de reforma muito inferior ao dos Trabalhadores Franceses, mas que os enche de contentamento saloio por dela beneficiarem em Portugal.

Ignoram ainda que a origem dos atuais tumultos franceses reside numa sectarização de classes entre cidadãos Franceses, que se acentua por estar ainda estratificada em termos geracionais...

Ignoram igualmente o facto de que a maioria daqueles jovens, ainda que morenos, de olhos rasgados ou nariz bicudo, e aroma a canela, caril, ou açafrão, são efetivamente Franceses, nascidos em França, filhos de Franceses nascidos em França, vítimas de uma sociedade racista e de agentes de autoridade de alinhamento ideológico fascista, um problema de escala mundial que teimamos em continuar a ignorar.

Esta é a forma de ver as coisas que estamos a dar de bandeja à preguiça intelectual.

O cidadão comum tem hoje, incutido pela sociedade, o ódio ao estudo, ao conhecimento, e a perseguição condenatória à intelectualidade. Não é um fator que se erradique numa geração, pelo contrário, é algo com que vamos ter de aprender a lidar e a contornar, tendo no entanto de arranjar capacidade para inverter o sentido, tal como se inverteu, em Portugal, naquele período de antes e depois da revolução de Abril.

Estes são os eleitores da extrema direita (que os vazios e os interesseiros tentam equiparar à esquerda, como se houvesse extremismos desviantes em qualquer política de esquerda), os que votam na extrema direita e a elegem para responsabilidades políticas que, pela sua própria natureza histórica, tratarão de os castigar a si mesmos.

Aqueles quatro velhotes, orgulhosos da pobreza de quem os rodeia, cultivando não o ódio de classe, mas à sua própria classe, não sabem que o alinhamento político que escolhem não tem sequer capacidade para justificar as suas próprias posições.

Os quatro velhotes que, em meio de conversa, lá vão deixando sair um "o que isto precisava sei eu" ou "o outro é que tem razão", não têm densidade intelectual suficiente para perceber que, pela sua própria lógica de pensamento, não existia Portugal, o país cujo hino orgulhosamente cantam e defendem contra tentativas de alteração, sem terem sequer um dia perscrutado a sua letra. 

Não lhes passa pela ideia que a sua própria ideia remete o direito exclusivo de vivência territorial aos Estrímios, e que a sua adoração pela menina loira que lhes serve o café já constitui, por si, uma aberração ao próprio pensamento!