domingo, 16 de julho de 2023

Onde o povo está

A história ensina-nos que as primeiras cidades, e todas as que se seguiram ao longo dos séculos, apareceram pela necessidade de concentração do povo, para que a vida em comunidade se pudesse desenrolar no seu conceito básico. A proximidade abriu espaço para uma maior e melhor troca de bens, produtos e serviços e, mais tarde, com a inclusão dos serviços públicos essenciais, dentro da lógica de proximidade e consequente otimização da ação e abrangência desse serviço.

Em Lisboa, por exemplo, Alfama resultou da concentração de trabalhadores do porto, estivadores, varinas, conserveiras e operários da tabaqueira.

Em boa verdade, o surgimento das cidades resultou de uma sempre grande necessidade dos pobres em viver em aglomerado, otimizando recursos, minimizando os efeitos da escassez, sobretudo económica.

Esse conceito tem sido descaracterizado pelo fenómeno da gentrificação, que é o afluxo das classes mais abastadas aos centros das cidades, obrigando os mais pobres a fugir para periferia.

Muitos dirão que se trata de uma inevitabilidade. Na verdade, o fenómeno é até já bem visível nos resultados eleitorais das freguesias que compõem as maiores cidades em Portugal, tendo passado todas de uma realidade de maioria de preferência política de esquerda, para o entendimento diametralmente oposto.

Para que nos entendamos, a lógica de mercado é um fenómeno perfeitamente normal, entendível, e aceitável, desde que submetido aos setores da sociedade, e economia, que não podem em causa o equilíbrio social.

Infelizmente, a ganância e a sede de lucro, a todo o custo, do monstro capitalista, abraçam já o entendimento de que mesmo as bases do equilíbrio social são vendáveis e delas pode ser retirado lucro.

A especulação imobiliária pode e deve ser travada, regulamentando ou legislando, conforme o ponto de vista ou a soberania de ação, de modo a que o equilíbrio social se mantenha e as cidades continuem, como sempre, a ser a casa dos operários, serventes, comerciantes, etc... Com todos os serviços públicos que lhes são garantidos pela Constituição da República.

De outra forma, os centros das cidades passarão a ser território franco, sem direitos nem obrigações das autarquias e dos governos, e devemos começar a debater se não deverão os serviços públicos, pela lógica que os refunda, ser desviados e reimplementados na periferia, em detrimento do centro urbano, indo servir, efetivamente, os utentes, ou seja, o povo!



domingo, 9 de julho de 2023

o ódio de classe, à sua própria classe

São 11 da manhã de um domingo de calor numa pastelaria dos subúrbios de uma das "grandes" cidades portuguesas.


Quatro homens, reformados, ex emigrantes em França, discutem os tumultos de Paris e outras cidades Francesas e chegam rapidamente a uma conclusão unânime.

Do alto da sua parolíssima assunção de privilégio, declaram sem vergonha nenhuma que a solução era pegar neles todos, meter num avião, e mandar para África. Assim, sem mais!

Ignoram o papel que os imigrantes Portugueses tiveram, em França, na marcação de passo do avanço nos direitos dos Trabalhadores Franceses, furando greves, aceitando pagamentos por baixo da mesa, contribuindo para a fuga aos impostos que patrões, muitas vezes também Portugueses, lhes propunham, o que resultou, na maioria dos casos, num valor de reforma muito inferior ao dos Trabalhadores Franceses, mas que os enche de contentamento saloio por dela beneficiarem em Portugal.

Ignoram ainda que a origem dos atuais tumultos franceses reside numa sectarização de classes entre cidadãos Franceses, que se acentua por estar ainda estratificada em termos geracionais...

Ignoram igualmente o facto de que a maioria daqueles jovens, ainda que morenos, de olhos rasgados ou nariz bicudo, e aroma a canela, caril, ou açafrão, são efetivamente Franceses, nascidos em França, filhos de Franceses nascidos em França, vítimas de uma sociedade racista e de agentes de autoridade de alinhamento ideológico fascista, um problema de escala mundial que teimamos em continuar a ignorar.

Esta é a forma de ver as coisas que estamos a dar de bandeja à preguiça intelectual.

O cidadão comum tem hoje, incutido pela sociedade, o ódio ao estudo, ao conhecimento, e a perseguição condenatória à intelectualidade. Não é um fator que se erradique numa geração, pelo contrário, é algo com que vamos ter de aprender a lidar e a contornar, tendo no entanto de arranjar capacidade para inverter o sentido, tal como se inverteu, em Portugal, naquele período de antes e depois da revolução de Abril.

Estes são os eleitores da extrema direita (que os vazios e os interesseiros tentam equiparar à esquerda, como se houvesse extremismos desviantes em qualquer política de esquerda), os que votam na extrema direita e a elegem para responsabilidades políticas que, pela sua própria natureza histórica, tratarão de os castigar a si mesmos.

Aqueles quatro velhotes, orgulhosos da pobreza de quem os rodeia, cultivando não o ódio de classe, mas à sua própria classe, não sabem que o alinhamento político que escolhem não tem sequer capacidade para justificar as suas próprias posições.

Os quatro velhotes que, em meio de conversa, lá vão deixando sair um "o que isto precisava sei eu" ou "o outro é que tem razão", não têm densidade intelectual suficiente para perceber que, pela sua própria lógica de pensamento, não existia Portugal, o país cujo hino orgulhosamente cantam e defendem contra tentativas de alteração, sem terem sequer um dia perscrutado a sua letra. 

Não lhes passa pela ideia que a sua própria ideia remete o direito exclusivo de vivência territorial aos Estrímios, e que a sua adoração pela menina loira que lhes serve o café já constitui, por si, uma aberração ao próprio pensamento!



domingo, 29 de janeiro de 2023

Ordeiramente, à miséria global

O Presidente da Assembleia da República afirmou que todos os estudos de impacto económico que viu garantem bastante retorno financeiro à realização das jornadas mundiais da juventude. Nenhum jornalista presente lhe perguntou que estudos são esses... A RTP passou há dias uma peça jornalística que dava conta de não haver, até à data, nenhum estudo do género para este evento, por dois motivos: primeiro porque ninguém os tinha pedido, e segundo porque não estariam sequer definidas as métricas que os balizariam. Portugal perde-se demasiadas vezes neste tipo de verdades incontestada, e os políticos sabem disso, aproveitando-se até à exaustão. Vale a pena discutir as probabilidades de sucesso económico de um (ainda que) mega evento religioso, mas que apenas atrairá jovens, por via do seu próprio propósito e nome. Apesar de as notícias continuarem a sair excessivamente debruçadas na polémica e não nos factos, conseguimos perceber que os custos totais da construção e organização do evento ultrapassam os 160 milhões de euros. Não se sabendo o valor assumido pela igreja católica (mas conhecendo-lhe o cariz economicista e acumulador de séculos) e tendo o Governo comunicado que apenas lhe competem cerca de 30 milhões, está mais que visto que muito se vai fazer em cima do endividamento das autarquias. Há, por isso, quem defenda que este é um evento lucrativo porque trará um retorno de mais de 300 milhões. Então vejamos: Alguém que muito prezo alertava-me, há dias, para o facto de lhe parecer demasiado ambiciosa a previsão de que miúdos e jovens, ainda demasiado entregues à ilusão religiosa e, por isso, embuidos de um estado de alma etéreo, durante o evento, venham para Lisboa alojar-se em locais de elevado valor, ou almoçar em restaurantes de experiências de degustação da cozinha local, ou ainda comprando "souvenirs" de artesãos ou iniciativas locais. Dizia-me: "todos sabemos que, mundo fora, por força do seu espírito prático e fácil adaptação e convivência com a adversidade, os jovens resolvem a coisa com uma tenda da Decathlon e meia dúzia de sanduíches cujas vitualhas compraram no Lidl". O que me leva a concordar com o epíteto de absurdas sobre as previsões de retorno financeiro, ainda que nenhuma exista, apesar de os políticos nelas se continuarem a debruçar. Há, depois, outra confusão muito comum: A perspetiva de que o ganho financeiro privado valida o gasto financeiro público. Um retorno completo do investimento público apenas seria possível num cenário tal de trocas comerciais que garantisse o mesmo valor em receitas fiscais ou, por outro lado, em proveito inerente à utilização de serviços públicos. Ora, bem sabemos que tal nos parece altamente improvável e, por via da organização económica da sociedade atual, tal resultará, apenas, em maior acumulação capitalista, inerente ao facto de TUDO o que dê lucro, neste país, estar nas mãos dos grandes grupos económicos sem exceção. Era já tempo de sermos meno preguiçosos no pensamento e pragmáticos na análise... Continuarmo-nos a debruçar na "crítica do meme", ou no culto do grunhido comum, fará apenas com que nos encaminhemos, de forma mais ou menos ruidosa, mas sempre em alinhamento previsível e ordeiro para a miséria global!