sábado, 11 de março de 2017

três oitos e o direito a desligar



A reivindicação pelas 8 horas de trabalho diárias surgiu em 1866 pelas mãos da National labour union dos Estados unidos e da I Internacional no seu congresso de Genebra.
A partir daí, várias ações de reivindicação, manifestações e declarações conjuntas foram ganhando espaço até ao 1 de Maio de 1886, em Chicago, onde por força da tensão entre os sindicatos e as entidades patronais que se acentuou até aí, confrontos entre Trabalhadores e forças policiais a mando dos patrões resultaram em mortos de ambos os lados.
A partir daí assistiu-se a um acentuam dos confrontos e à total insistência das entidades patronais na repressão sobre os trabalhadores e, munidos da influência sobre o poder judicial, perseguiram, prenderam e condenaram à morte por enforcamento os dirigentes de alguns sindicatos entretanto ilegalizados.
Esta é uma pequena parte da luta dos trabalhadores pelo direito a uma jornada de trabalho estável e de acordo com o princípio da regra 8x8x8 que determina a natureza distributiva de 8 horas do dia para trabalhar, 8 para dormir e 8 para a vida social de cada cidadão.
Ora, assistimos ainda hoje, quase 130 anos depois de Chicago, à continuação desta luta e, se temos hoje fundados direitos na reivindicação, já novos problemas se nos deparam, como a enorme dificuldade de sentido de classe de uma vasta fatia da comunidade Trabalhadora que chega mesmo a incluir operários.
Arrisco dizer que ignorar o esforço de outros e a forma como o pagaram com a própria vida chega a ser desumano e irresponsável e tem o condão de traçar avaliação de caráter a pessoas por quem o respeito e compreensão é difícil manter, de tão revoltante.
A tentativa de imposição de mecanismos de desregulação do horário de trabalho é um retrocesso civilizacional inquestionável e representa uma tentativa de diminuição da condição humana e social dos Trabalhadores. A relação contratual entre patrão e trabalhador não se faz num contrato equiparado à compra e venda de mercadoria, bem ou serviço. Um contrato de trabalho baliza as condições de cedência, do ponto de vista do Trabalhador, de uma parte da sua vida, por inerência do seu tempo, esforço e intelecto e, indo buscar a necessidade de lembrar a obrigação primeira do direito do trabalho, deve valorizar primeiramente essa condição de dependência do Trabalhador sob o patrão que se traduz numa manietação da condição social de liberdade e sobrevivência do primeiro por arbítrio do segundo.
Qualquer tipo de mecanismo de desregulação do tempo de trabalho deverá ser combatido. O argumentário anterior aplica-se perfeitamente à fundamentação deste conceito. Nenhum trabalhador sai justamente compensado se, por compensação ao trabalho extra que desempenhou no dia anterior, for dispensado mais cedo no dia seguinte. A primeira situação penaliza-o, muitas vezes de forma grave, na sua vida social por se ver impossibilitado de cumprir com a sua rotina diária não raramente de si unicamente dependente. A segunda quase nunca o beneficia precisamente porque, na medida em que a regulamentação é apresentada por iniciativa dos patrões, quase sempre aparece de surpresa sem que o Trabalhador tenha tido tempo de preparar a sua vida em função de poder usufruir inteiramente dessa folga.
É claro que isto se refere inteiramente às inovações legislativas traduzidas nos bancos de horas ou regimes de adaptabilidade laboral. Ambos são extremamente penalizadores para o Trabalhador e, ainda assim, as entidades patronais apresentam com rótulo de auto-flexibilização, a possibilidade de se optar por regimes individuais ou coletivos. Aqui, mais uma vez, ainda na clara estratégia de apostar tudo para conseguir muito, os patrões não apresentam ganho algum aos Trabalhadores, senão vejamos:

Nos regimes de banco de horas individual, o Patrão aposta claramente na sua posição de parte dominante e sabe que, pressionando o Trabalhador em confrontação isolada, obterá na maioria das vezes aquilo a que se propõe por óbvia posição frágil do Trabalhador fruto da sua dependência e instinto de sobrevivência. Nesta situação, a maioria dos Trabalhadores acaba por ceder às pretensões do patrão, coisa que não faria, maioritariamente, se estivesse inserido num grupo decisor comum.

Ora, para aqueles que, pela sua maior coragem ou independência, estariam dispostos a negar tal pretensão à entidade patronal, é apresentado o mecanismo grupal. A grande aberração onde, camuflado no conceito democrático de decisão maioritária, se pode impor a desregulação do horário de trabalho a um Trabalhador mesmo contra sua vontade. Escusado seria dizer que a tal maioria seria, obviamente e quase sempre, abordada e pressionada individualmente ou enganada com apresentação sem contraditório da situação, dando a entender ganhos que raramente ou nunca se evidenciarão.

Posto isto, interessa separar este problema em dois:

Se até aqui falámos de imposições e posições prepotentes das entidades patronais, devemos dar o mesmo valor às situações de auto-desregulação do horário de trabalho. Se a primeira se vence combatendo o medo e diminuindo a dependência do Trabalhador por via da valorização do seu trabalho, já a segunda se apresenta bem mais difícil por implicar uma necessidade de mudança cultural rumo à cimentação do sentido de classe mas a partir da sua plantação, não apenas nos grupos de Trabalhadores sujeitos a esta desvirtuação ideológica como no seio de organismos que os representam e se propõem à sua condução.
A este propósito temos assistido ultimamente a um debate nada aprofundado mas muito espalhado pelos meios debitadores de ruído e que cavalga uma nova reivindicação apelidada de "direito a desligar".
Ora, tendo acompanhado algumas discussões promovidas por esse debate, encontro muitas vezes posições de acautelamento para que não se esteja, desta forma, a validar uma posição nada natural mas viralizada por parte das empresas, que é o facto de não estarem a cumprir com a obrigação de desligar.
Pois é aí que reside a diferença, porque depois não se tem visto esses organismos ajustar a sua mensagem.
O Direito a desligar, por parte do Trabalhador, é legítimo e validado já quer pela legislação existente quer pela própria constituição da República. O que não existe na nossa legislação é a OBRIGAÇÃO de desligar imposta às empresas.
Não estou a defender que as empresas se desliguem do mundo, defende-se sim a necessidade de impor às empresas que adotem mecanismos que lhe permitam continuar a funcionar sem incomodar os seus Trabalhadores para lá do horário de Trabalho.
Este não é um processo e nem sequer um debate fácil... Há diferenças de entendimento e predisposições culturais que impedem, à partida, um consenso alargado. Há inclusivamente a necessidade de evidenciação, inerente à condição humana e a sua permanente ambição, que leva o Trabalhador a querer mostrar trabalho e dedicação absoluta à causa que o empregador não abraça mas professa.

Há pois aqui uma necessidade de começar a forçar o poder legislativo a atuar sobre as obrigações das empresas neste âmbito e terá de haver, por parte dos Trabalhadores e das organizações que os representam, a clareza de ideias que existe só quando nos movemos apenas pela luta de melhoria dos direitos e jamais pelo reconhecimento público.

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